Friday, June 20, 2008












Trigal com corvos, Vincent van Gogh 1890, museu Van Gogh - Amsterdão

Sunday, September 03, 2006

O Corvo de Poe

Um poema sombrio e invernoso neste fim de verão. Edgar Allan Poe encontra em Fernando Pessoa o melhor dos tradutores.














Edgar Allan Poe

-----------------------------O CORVO
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Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
«Uma visita», eu me disse, «está batendo a meus umbrais.
--------------------------É só isto, e nada mais.»

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio Dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
---------------------------Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo:
«É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
--------------------------É só isto, e nada mais.»

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
«Senhor», eu disse, «ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi...» E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
-------------------------Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
--------------------------Isto só e nada mais

Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
«Por certo», disse eu, «aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.»
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
---------------------------«É o vento, e nada mais.»

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
--------------------------Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
«Tens o aspecto tosquiado», disse eu, «mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.»
--------------------------Disse o corvo: «Nunca mais.»

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
--------------------------Com o nome «Nunca mais».

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, «Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais».
------------------------Disse o corvo, «Nunca mais».

A alma súbito movida por frase tão bem cabida.
«Por certo», disse eu, «são estas vozes usuais.
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais.»
---------------------------Era este «Nunca mais».

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
----------------------------Com aquele «Nunca mais».

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
---------------------------Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
«Maldito!», a mim disse, «deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!»
--------------------------Disse o corvo: «Nunca mais.»

«Profeta», disse eu, «profeta - ou demónio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!»
---------------------------Disse o corvo: «Nunca mais.»

«Profeta», disse eu, «profeta - ou demónio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais,
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!»
---------------------------Disse o corvo: «Nunca mais.»

«Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!», eu disse. «Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!»
--------------------------Disse o corvo: «Nunca mais.»

E o corvo, na noite infinita, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha dor de um demónio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais.
E a minh’alma dessa sombra, que no chão há mais e mais,
--------------------------Libertar-se-á... nunca mais!

--------------------Tradução de Fernando Pessoa

Friday, September 01, 2006


















Anunciação por Fra Angelico

Thursday, August 31, 2006

"Spiritual": Coltrane e o espírito do jazz


















------------------------John Coltrane e Dizzy Gillespie

de Live At The Village Vanguard

John Coltrane nos saxofones tenor e soprano
Eric Dolphy no clarinete baixo
McCoy Tyner no piano
Reggie Workman no contrabaixo
Elvin Jones na bateria
Gravado no Village Vanguard, New York a 2 e 3 de novembro de 1961

Em 1958, na sua casa em Philadelphia, John Coltrane travava uma luta desesperada contra a adição de drogas. Com o auxílio da mulher e da mãe passou vários dias fechado num quarto a pão e água, lutando contra a dependência física da heroína. Coltrane referiu posteriormente uma experiência mística ocorrida nesse período, que traria um novo significado à sua vida e à sua música. Nos tempos que se seguiram, livre das drogas, Trane entrega-se à prática da meditação. A julgar pelas lendárias gravações de Kind of Blue, com Miles Davis e Giants Steps, como chefe de banda, já em 59, a sua viagem interior traduziu-se, musicalmente, num estádio de rara plenitude criativa.
Mais tarde, em 61, as gravações do Village Vanguard revelam um novo estilo, fruto da incessante e inconformada experimentação encetada desde os tempos em que actuava no quinteto de Miles Davis. O seu discurso tem agora uma nova respiração, alcançando uma intensidade inesperada e quase hipnótica, onde se sente também a influência da música clássica indiana.
Spiritual foi um dos diferentes caminhos trilhados por um saxofonista inconformado e talentoso, que procurou a espiritualidade na sua vida e na sua arte.

Thursday, June 15, 2006

Almada e a Flor

Almada escreve a infância num texto eternamente cheio de graça! A ingenuidade e a simplicidade reencontradas no que fomos um dia, talvez no que somos ainda, algures dentro de nós.
Auto retrato de José de Almada Negreiros
A Flor
«Je travaille tant que je peux et le mieux que je peux, toute la journée. Je donne toute ma mesure, tous mes moyens.Et après, si ce que j'ai fait n'est pas bon,je n'en suis plus responsable; c'est que je ne peux vraiment pas faire mieux. »
Henri Matisse

Pede-se a uma criança: Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.
Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase não resistiu.
Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais.
Depois a criança vem mostrar essa linhas às pessoas: uma flor!
As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!
Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor !
Almada Negreiros em A Invenção do Dia Claro

Wednesday, May 10, 2006

Os Beatles e a solidão de Eleanor


















Em 1966, a poucas semanas da gravação do álbum Revolver, George Martin, produtor dos Beatles, ouviu Paul McCartney cantar ao piano uma canção intitulada “Eleanor Rigby”. Martin terá percebido a inspiração barroca da melodia e sugeriu à banda que pusesse de lado os instrumentos tradicionais de uma Rock band: em vez disso um octeto de cordas. Paul e os companheiros seguiram, como noutras vezes, a sugestão do seu produtor e uma canção pop, que falava de solidão e de gente solitária, com um acompanhamento de música de câmara, foi número um nos tops britânicos. Tinham passado apenas quatro anos desde o lançamento do primeiro single,“Love Me Do”, mas a viagem musical dos Beatles era já muito longa.
Da memória desses tempos há factos que na distância de várias décadas permanecem notáveis: um deles é a qualidade musical presente em muitas das canções que então atingiam os tops - coisa quase impossível nos tempos que correm. A própria carreira dos Beatles enquanto grupo que conheceu o sucesso numa fase muito inicial da sua carreira, deixa adivinhar uma demanda incessante no sentido da inovação nos planos técnico e formal. O êxito dos Beatles, em vez de os reduzir ou condicionar a uma fórmula eternamente repetida foi marcado pela busca sistemática de novos sons, novas harmonias e novos ritmos. Para isso recorreram a fontes tão diversas como a música tradicional indiana, à própria música barroca ocidental, ou à exploração criteriosa das possibilidades oferecidas pela tecnologia de ponta da gravação em estúdio em meados dos anos sessenta.
George Martin, a quem um dia chamaram o quinto Beatle, escreveu o arranjo tendo Paul McCartney escrito a segunda linha melódica tocada por um violoncelo.

Wednesday, March 15, 2006

Fernando Pessoa, Portugal e o Mostrengo

Fernando Pessoa tinha uma visão decadentista do Portugal do seu tempo. Infelizmente somos levados a crer que essa visão não se alteraria se o ilustre poeta fosse nosso contemporâneo. De facto desde a sua morte o Quinto Império permanece uma visão nevoenta e distante e o mostrengo que assombrou o homem do leme contínua entre nós. Temos um novo Cabo das Tormentas nos ventos da corrupção e da desonestidade travestida de incompetência. Afinal a competência é antes de mais uma atitude: quem se preocupa em melhorar as suas aptidões é geralmente bem sucedido se o tentar com seriedade. Para ser competente basta, portanto, ser honesto acima de tudo. Fernando Pessoa era competente e, sobretudo, tinha talento - qualidade nem sempre ao alcance de qualquer mortal mesmo que a procure com honestidade. Recordamos hoje esse mostrengo que Pessoa escreveu em estrofes de extraordinária beleza.


Fernando Pessoa por Almada Negreiros

O MOSTRENGO

O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»

«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso,
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»

Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as repreendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»

De Fernando Pessoa em "Mensagem"